sábado, 10 de setembro de 2016

Mais de 100 anos de comunhão

Sempre houve uma simbiose do Brasil e de sua sociedade perante o desempenho da Seleção Brasileira de Futebol, numa sinergia de momentos, sentimentos, auto-estima e ânimos. A Seleção Brasileira foi o único símbolo no país ao longo do século XX que deu algum sentido à unidade nacional. Ela foi um símbolo forjado em torno do qual orbitou esta frágil unidade. O estado de ânimo de um era transmitido ao outro, numa íntima interrelação, assim como era afetado por ele. Ao longo de cem anos, os melhores momentos de um foram os melhores momentos do outro, num meio de correlação espititual entre a confiança e as ânsias coletivas.

Em 1958, em pleno período de prosperidade sob o governo de Juscelino Kubitschek, o primeiro título mundial coroava aquele que era apontado como o “país do futuro”. Pelas ruas se entoava “com o brasileiro não há quem possa”. A prosperidade se estendeu até 1962, quando a Seleção Brasileira foi bi-campeã. Após aqueles prósperos anos, a economia brasileira teve uma breve recessão, e em 1966, o desempenho na Copa da Inglaterra foi o pior da história da seleção, em sua única eliminação em 1ª Fase em todas as Copas jogadas no século XX. Veio então o Milagre Econômico, e a Seleção Brasileira foi tri-campeã na Copa do México em 1970. Em 1974, a Crise do Petróleo e a Holanda de Cruijff mostraram que a prosperidade é um estado passageiro. Cambaleante até 1982, no grave ponto de inflexão no qual o Brasil declarou a moratória de sua dívida externa e a Itáia de Paolo Rossi matou o futebol ofensivo. De 1982 a 1994, a hiperinflação corroía o Brasil, e a desesperança estava estampada na seleção: será que podíamos ser campeões sem Pelé? Em 1994, a inflexão agora era para cima, o Plano Real domava a hiperinflação, e a Seleção Brasileira era tetra-campeã na Copa dos Estados Unidos, o brasileiro voltava a acreditar no seu futuro, com a seleção tendo, entre 1994 e 2002, disputado três finais de Copas do Mundo consecutivas, no maior período de prosperidade obtido, até então, na história, por uma seleção de futebol.
    
Em 2014, mais uma vez na história foi assim, mostrando esta sinergia. Aquele 7 x 1 jogou o país quase num estado coletivo de depressão, desconfiança e incapacidade, cujos reflexos influenciavam e eram influenciados pelo confuso momento político-econômico que o Brasil enfrentava. Ali se iniciava um dos mais duros períodos de recessão da história político-econômica brasileira. Politicamente, no final daquele mesmo ano da Copa do Mundo, houve um dos pleitos presidenciais mais confusos e lamentáveis pelo qual o país havia passado em sua história de até então. O historiador Marco Antonio Villa assim o definiu no título do livro que escreveu: "2014: a eleição mais suja da história". Pelas palavras do mesmo autor: "Ninguém passou imune pelas eleições de 2014. Após 12 anos de governo do Partido dos Trabalhadores, o Brasil se dividiu entre apoiadores apaixonados da continuidade do projeto do PT e eleitores indignados com os escândalos de corrupção e dispostos a mobilizar grandes contingentes de pessoas para o voto na oposição. Os debates, as trocas de acusação, as matérias na imprensa e, principalmente, as redes sociais, foram responsáveis por um momento de politização nunca antes experimentado". Todas as desigualdades sócio-econômicas acumuladas ao longo do jovial processo de desenvolvimento do país eclodiram num embate de "nós contra eles", em convites a conflitos de classe, e com a emersão de doses preocupantes de preconceito e rascismo. Discursos segregacionistas que partiam de todas as partes envolvidas na disputa. Qualquera que argumentasse isenção de culpa estaria sendo hipócrita. Todos perderam.

Além de ter sido a mais conflituosa, foi a eleição presidencial mais apertada da história do país, decidida por poucos pontos percentuais de diferença. No 1º turno, a presidente Dilma Rousseff, que tentava a reeleição pela coligação do Partido dos Trabalhadores (PT) com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), obteve 43,3 milhões de votos, 41,6% do total. Foi a 2º turno contra Aécio Neves, do Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB), que obteve 34,9 milhões de votos, 33,6% do total. Em terceiro, mais uma vez, apareceu Marina Silva, agora pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), com 22,2 milhões de votos (21,3% do total). Os demais seis candidatos que participaram do pleito, somados, tiveram 3,5% dos votos. A disputa em segundo turno ferveu. Dilma venceu com 54,5 milhões de votos contra 51,0 milhões obtidos por Aécio. Percentualmente: 51,6% x 48,4%.

No Brasil, assim como em grande parte da América Latina, onde o realismo mágico na forma de pensar dá margem à política populista na forma de conduta de vários de seus líderes, faltava à política uma conduta moral do desenvolvimento. Faltava à liderança política brasileira, e as eleições de 2014 explicitaram mais do que nunca isto, um compromisso com o sucesso prático, mais atento a resultados e à realidade, assumindo responsabilidade pelas eventuais falhas no alcance dos grandes objetivos, sem retóricas ou jogos de empurra. A economia brasileira viveu um momento no qual caminhava de mal a pior, culminando no biênio 2015-2016 com a maior recessão enfrentada pelo Brasil em muitos anos. O Produto Interno Brurto do país havia crescido 3,9% em 2011, 1,9% em 2012, 3,0% em 2013 e 0,1% em 2014. No acumulado dos quatro primeiros anos de mandato de Dilma Rousseff, o crescimento econômico do país foi de meros 2,3% ao ano. E a situação piorou, com a economia tendo tido uma queda % de seu PIB nos anos seguintes. O desempenho acumulado indicava a economia crescendo a uma taxa inferior à do crescimento populacional. Para agravar o quadro, crescentes escândalos de corrupção, com sinais de desvio de verbas das empresas estatais para o financiamento do PT, num projeto de perpetuação no poder que sangrava em especial aos cofres da Petrobras. O Congresso Nacional tinha total descrédito junto à população. O país estava afundado num quadro grave de escassez de lideranças, sem sinais de solução a curto prazo. A incapacidade da classe política de enfrentar inevitáveis custos de curto prazo para estabilizar o quadro refletia a fragilidade das coalizões governistas, além de uma completa ausência de consenso quanto ao rumo a ser trilhado, ressurgindo indecisões sobre o papel da estabilidade monetária como pré-condição para o crescimento sustentado. Mais uma vez o Brasil parecia enfrentar um esgotamento do paradigma das políticas do “homem cordial”, com a incapacidade de se explicitar escolhas levando a uma deterioração progressiva da capacidade de gestão.

Um resumo do sentimento que assolava o Brasil, nas palavras de Arnaldo Jabor, em artigo escrito em 15 de dezembro de 2015: "A melancolia se instala quando há uma grande perda, seja de uma pessoa, de bens e até de um país. É diferente do luto, diz Freud, que provoca um grande desinteresse pela realidade, a não ser sobre o objeto perdido. Já na melancolia, com a perda, o mal do mundo cai sobre a própria pessoa, ou seja, quem não vale nada é o “eu”. No luto, é o mundo que fica pobre e vazio; na melancolia, é o próprio sujeito. O luto, aos poucos, termina, tudo volta ao normal. Mas na melancolia nunca se acaba a dor. No melancólico se apresenta uma coisa que não aparece no luto: a perda da autoestima, um enorme empobrecimento de si mesmo. Os séculos de patrimonialismo que nos legou Portugal, tirando da sociedade a autonomia sobre si mesma, transformou-a em uma população de impotentes e criou uma massa amorfa e sem ânimo – melancólica. Sempre sofremos do complexo de vira-latas. Sempre. E nossa melancolia é secular. O país se voltou contra nossas cabeças, e viramos um povo de deprimidos e insatisfeitos. Nunca fomos o paraíso anunciado e nos enganamos com nossas palmeiras e nossos Carnavais. A depressão econômica criou a depressão interna. Vemos que uma perene alegria pode ser uma forma de paralisia. Estamos pela primeira vez tendo de lidar com nossa vil tristeza. O Brasil evolui pelo que perde, e não pelo que ganha. Sempre houve no país uma desmontagem contínua de ilusões históricas. Este é nosso torto processo: com as ilusões perdidas, com a história em marcha à ré, estranhamente, andamos para a frente. O Brasil se descobre por subtração, não por soma".

O futebol brasileiro, politicamente, estava imerso numa crise ainda mais grave. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) perdera por completo a pouca credibilidade que ainda lhe restara. Três presidentes consecutivos acabaram indiciados por corrupção. Ricardo Teixeira, que presidiu a CBF de 1989 a 2012, renunciou ao cargo quando emergiram acusações de recebimento de suborno para favorecimento à empresa de marketing suíça ISL entre 1992 e 2000, ilicitudes das quais também participaram seu sogro, o ex-presidente da CBF e da FIFA João Havelange. Pouco antes da FIFA divulgar seu relatório final, que incriminava a ambos, Teixeira renunciou à presidência da CBF, em fevereiro de 2012, sendo sucedido por José Maria Marin, que presidiu a entidade até abril de 2015, quando foi sucedido por Marco Polo Del Nero, então presidente da Federação Paulista. O que parecia ser uma nova dinastia a frente da CBF, dado que o presidente eleito era relativamente jovem, acabou se transformando na mais breve passagem de um presidente a frente da CBF, que foi presidida por ele de maio a dezembro de 2015, quando renunciou ao cargo após ser indiciado pela justiça norte-americana no mais grave caso de corrupção da história do futebol mundial. Del Nero passou praticamente todo o seu mandato sem poder viajar para o exterior: temendo que fosse ser preso pela Interpol, ele não participou de nenhuma reunião da FIFA depois que Marin foi preso, nem acompanhou a Seleção Brasileira nos quatro primeiros jogos válidos pelas Eliminatórias.

O caso de corrupção na FIFA partiu de investigações da Justiça dos EUA em torno dos contratos de organização da Copa América Centenário, que lá foi realizada em 2016. Os primeiros investigados a serem detidos foram Chuck Blazer, dirigente da Federação dos Estados Unidos, o também norte-americano Aaron Davidson e o brasileiro José Hawilla, estes dois últimos sócios na empresa Traffic, envolvida com direitos de imagem de jogadores de futebol, contratos de televisionamento esportivo e organização de eventos.

Em 27 de maio de 2015, a Polícia Suíça interrompeu uma reunião na sede da FIFA em Zurique e prendeu sete dirigentes acusados numa investigação do FBI que se iniciou em 2011, sob indícios de corrupção na disputa pelo direito de sediar as Copas do Mundo da Rússia (2018) e do Qatar (2022), além de contratos de marketing e televisionamento, incluindo favorecimentos a empresas para a transmissão televisiva da Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Foram presos neste dia o presidente da CBF, José Maria Marin, além de Jeffrey Webb (presidente da Concacaf - Confederação das Américas Central e do Norte), o uruguaio Eugenio Figueredo (ex-presidente da Conmebol - Confederação Sul-Americana), Julio Rocha (presidente da Federação da Nicarágua), Costas Takkas (secretário geral da Concacaf); Rafael Esquivel (presidente da Federação da Venezuela) e Eduardo Li (presidente da Federação da Costa Rica). As investigações ainda levaram às prisões, nos meses seguintes, de Jack Warner (ex-presidente da Concacaf), do paraguaio Nicolás Leoz (ex-presidente da Conmebol), do argentino Alejandro Burzaco (executivo da TyC Sports, maior canal esportivo da Argentina), de Sergio Jadue (presidente da Federação do Chile), e dos empresários José Marguilles (brasileiro da Traffic) e os argentinos Hugo Jinkis e Mariano Jinkis, pai e filho, sócios da Full Play Group, empresa argentina de marketing esportivo.

Na segunda fase das investigações, a Procuradoria Geral de Justiça dos Estados Unidos, atendendo às investigações do FBI, denunciou, em dezembro de 2015, mais dezesseis pessoas por recebeimento de suborno em contratos ligados a competições da Conmebol e das federações nacionais. No caso da CBF, incluindo o contrato de material esportivo da Seleção Brasileira assinado com a norte-americana Nike, maior empresa de material esportivo do mundo. Eles foram indiciados sob as acusações de conspiração para extorquir, fraude e lavagem de dinheiro. Foram indiciados os mandatários Ricardo Teixeira, Marco Polo Del Nero, Juan Ángel Napout (presidente da Conmebol), José Luis Meiszner (secretário geral da Conmebol), Eduardo Deluca (ex-secretário geral da Conmebol), Romer Osuna (ex-tesoureiro da Conmebol), Alfredo Hawit (presidente da Concacaf), Manuel Burga (presidente da Federação do Peru), Carlos Chávez (ex-presidente da Federação da Bolívia), Luís Chiriboga (presidente da Federação do Peru), Ariel Alvarado (ex-presidente da Federação do Panamá), Rafael Callejas (ex-presidente da Federação de Honduras), Brayan Jiménez (presidente da Federação da Guatemala), Rafael Salguero (ex-presidente da Federação da Guatemala), Héctor Trujillo (secretário geral da Federação da Guatemala) e Reynaldo Vázquez (secretário geral da Federação de El Salvador).

As investigações por pagamentos de suborno na escolha de países-sedes de Copa do Mundo ainda levaram à exclusão do futebol do suíço Jerome Valcke, secretário geral da FIFA, e aos afastamentos do francês Michel Platini (presidente da UEFA) e de suíço Joseph Blatter da presidência da FIFA.

Humilhado dentro de casa em 2014 com os fatídicos minutos que aniquilaram a Seleção Brasileira naqueles 7 x 1, e sob grave crise de liderança fora de campo, vendo três presidentes da CBF indiciados numa mesma operação internacional em 2015, o futebol brasileiro enfrentava, sem dúvidas, a mais grave crise de sua história. E o momento indicava mais uma vez um estado de comunhão entre o Brasil e a seleção, pois o triênio 2014-2016 foi um dos mais difíceis da história para a sociedade brasileira. As mazelas inevitalmente deixavam marcas sobre a liderança dentro de campo também. A Seleção Brasileira de Futebol teve sérias dificuldades para se reerguer após tamanho golpe.

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