Sempre houve uma simbiose do
Brasil e de sua sociedade perante o desempenho da Seleção Brasileira de
Futebol, numa sinergia de momentos, sentimentos, auto-estima e ânimos. A
Seleção Brasileira foi o único símbolo no país ao longo do século XX que deu
algum sentido à unidade nacional. Ela foi um símbolo forjado em torno do qual orbitou esta frágil unidade. O estado de ânimo de um era transmitido ao
outro, numa íntima interrelação, assim como era afetado por ele. Ao longo de
cem anos, os melhores momentos de um foram os melhores momentos do outro, num
meio de correlação espititual entre a confiança e as ânsias coletivas.
Em 1958, em pleno período de
prosperidade sob o governo de Juscelino Kubitschek, o primeiro título mundial
coroava aquele que era apontado como o “país do futuro”. Pelas ruas se entoava
“com o brasileiro não há quem possa”. A prosperidade se estendeu até 1962,
quando a Seleção Brasileira foi bi-campeã. Após aqueles prósperos anos, a
economia brasileira teve uma breve recessão, e em 1966, o desempenho na Copa da
Inglaterra foi o pior da história da seleção, em sua única eliminação em 1ª
Fase em todas as Copas jogadas no século XX. Veio então o Milagre Econômico, e
a Seleção Brasileira foi tri-campeã na Copa do México em 1970. Em 1974, a Crise
do Petróleo e a Holanda de Cruijff mostraram que a prosperidade é um estado
passageiro. Cambaleante até 1982, no grave ponto de inflexão no qual o Brasil
declarou a moratória de sua dívida externa e a Itáia de Paolo Rossi matou o
futebol ofensivo. De 1982 a 1994, a hiperinflação corroía o Brasil, e a
desesperança estava estampada na seleção: será que podíamos ser campeões sem
Pelé? Em 1994, a inflexão agora era para cima, o Plano Real domava a
hiperinflação, e a Seleção Brasileira era tetra-campeã na Copa dos Estados
Unidos, o brasileiro voltava a acreditar no seu futuro, com a seleção tendo,
entre 1994 e 2002, disputado três finais de Copas do Mundo consecutivas, no
maior período de prosperidade obtido, até então, na história, por uma seleção
de futebol.
Em 2014, mais uma vez na história
foi assim, mostrando esta sinergia. Aquele 7 x 1 jogou o país quase num estado
coletivo de depressão, desconfiança e incapacidade, cujos reflexos
influenciavam e eram influenciados pelo confuso momento político-econômico que
o Brasil enfrentava. Ali se iniciava um dos mais duros períodos de recessão da
história político-econômica brasileira. Politicamente, no final daquele mesmo
ano da Copa do Mundo, houve um dos pleitos presidenciais mais confusos e
lamentáveis pelo qual o país havia passado em sua história de até então. O
historiador Marco Antonio Villa assim o definiu no título do livro que
escreveu: "2014: a eleição mais suja da história". Pelas palavras do
mesmo autor: "Ninguém passou imune pelas eleições de 2014. Após 12 anos de
governo do Partido dos Trabalhadores, o Brasil se dividiu entre apoiadores
apaixonados da continuidade do projeto do PT e eleitores indignados com os
escândalos de corrupção e dispostos a mobilizar grandes contingentes de pessoas
para o voto na oposição. Os debates, as trocas de acusação, as matérias na
imprensa e, principalmente, as redes sociais, foram responsáveis por um momento
de politização nunca antes experimentado". Todas as desigualdades
sócio-econômicas acumuladas ao longo do jovial processo de desenvolvimento do
país eclodiram num embate de "nós contra eles", em convites a
conflitos de classe, e com a emersão de doses preocupantes de preconceito e
rascismo. Discursos segregacionistas que partiam de todas as partes envolvidas
na disputa. Qualquera que argumentasse isenção de culpa estaria sendo
hipócrita. Todos perderam.
Além de ter sido a mais
conflituosa, foi a eleição presidencial mais apertada da história do país,
decidida por poucos pontos percentuais de diferença. No 1º turno, a presidente
Dilma Rousseff, que tentava a reeleição pela coligação do Partido dos
Trabalhadores (PT) com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB),
obteve 43,3 milhões de votos, 41,6% do total. Foi a 2º turno contra Aécio
Neves, do Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB), que obteve 34,9 milhões
de votos, 33,6% do total. Em terceiro, mais uma vez, apareceu Marina Silva,
agora pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), com 22,2 milhões de votos
(21,3% do total). Os demais seis candidatos que participaram do pleito,
somados, tiveram 3,5% dos votos. A disputa em segundo turno ferveu. Dilma
venceu com 54,5 milhões de votos contra 51,0 milhões obtidos por Aécio.
Percentualmente: 51,6% x 48,4%.
No Brasil, assim como em grande
parte da América Latina, onde o realismo mágico na forma de pensar dá margem à
política populista na forma de conduta de vários de seus líderes, faltava à
política uma conduta moral do desenvolvimento. Faltava à liderança política
brasileira, e as eleições de 2014 explicitaram mais do que nunca isto, um
compromisso com o sucesso prático, mais atento a resultados e à realidade,
assumindo responsabilidade pelas eventuais falhas no alcance dos grandes
objetivos, sem retóricas ou jogos de empurra. A economia brasileira viveu um
momento no qual caminhava de mal a pior, culminando no biênio 2015-2016 com a
maior recessão enfrentada pelo Brasil em muitos anos. O Produto Interno Brurto
do país havia crescido 3,9% em 2011, 1,9% em 2012, 3,0% em 2013 e 0,1% em 2014.
No acumulado dos quatro primeiros anos de mandato de Dilma Rousseff, o
crescimento econômico do país foi de meros 2,3% ao ano. E a situação piorou,
com a economia tendo tido uma queda % de seu PIB nos anos seguintes. O
desempenho acumulado indicava a economia crescendo a uma taxa inferior à do
crescimento populacional. Para agravar o quadro, crescentes escândalos de
corrupção, com sinais de desvio de verbas das empresas estatais para o
financiamento do PT, num projeto de perpetuação no poder que sangrava em
especial aos cofres da Petrobras. O Congresso Nacional tinha total descrédito
junto à população. O país estava afundado num quadro grave de escassez de
lideranças, sem sinais de solução a curto prazo. A incapacidade da classe
política de enfrentar inevitáveis custos de curto prazo para estabilizar o
quadro refletia a fragilidade das coalizões governistas, além de uma completa
ausência de consenso quanto ao rumo a ser trilhado, ressurgindo indecisões
sobre o papel da estabilidade monetária como pré-condição para o crescimento
sustentado. Mais uma vez o Brasil parecia enfrentar um esgotamento do paradigma
das políticas do “homem cordial”, com a incapacidade de se explicitar escolhas
levando a uma deterioração progressiva da capacidade de gestão.
Um resumo do sentimento que
assolava o Brasil, nas palavras de Arnaldo Jabor, em artigo escrito em 15 de
dezembro de 2015: "A melancolia se instala quando há uma grande perda,
seja de uma pessoa, de bens e até de um país. É diferente do luto, diz Freud,
que provoca um grande desinteresse pela realidade, a não ser sobre o objeto perdido.
Já na melancolia, com a perda, o mal do mundo cai sobre a própria pessoa, ou
seja, quem não vale nada é o “eu”. No luto, é o mundo que fica pobre e vazio;
na melancolia, é o próprio sujeito. O luto, aos poucos, termina, tudo volta ao
normal. Mas na melancolia nunca se acaba a dor. No melancólico se apresenta uma
coisa que não aparece no luto: a perda da autoestima, um enorme empobrecimento
de si mesmo. Os séculos de patrimonialismo que nos legou Portugal, tirando da
sociedade a autonomia sobre si mesma, transformou-a em uma população de
impotentes e criou uma massa amorfa e sem ânimo – melancólica. Sempre sofremos
do complexo de vira-latas. Sempre. E nossa melancolia é secular. O país se
voltou contra nossas cabeças, e viramos um povo de deprimidos e insatisfeitos.
Nunca fomos o paraíso anunciado e nos enganamos com nossas palmeiras e nossos
Carnavais. A depressão econômica criou a depressão interna. Vemos que uma
perene alegria pode ser uma forma de paralisia. Estamos pela primeira vez tendo
de lidar com nossa vil tristeza. O Brasil evolui pelo que perde, e não pelo que
ganha. Sempre houve no país uma desmontagem contínua de ilusões históricas.
Este é nosso torto processo: com as ilusões perdidas, com a história em marcha
à ré, estranhamente, andamos para a frente. O Brasil se descobre por subtração,
não por soma".
O futebol brasileiro,
politicamente, estava imerso numa crise ainda mais grave. A Confederação
Brasileira de Futebol (CBF) perdera por completo a pouca credibilidade que
ainda lhe restara. Três presidentes consecutivos acabaram indiciados por
corrupção. Ricardo Teixeira, que presidiu a CBF de 1989 a 2012, renunciou ao
cargo quando emergiram acusações de recebimento de suborno para favorecimento à
empresa de marketing suíça ISL entre 1992 e 2000, ilicitudes das quais também
participaram seu sogro, o ex-presidente da CBF e da FIFA João Havelange. Pouco
antes da FIFA divulgar seu relatório final, que incriminava a ambos, Teixeira renunciou
à presidência da CBF, em fevereiro de 2012, sendo sucedido por José Maria
Marin, que presidiu a entidade até abril de 2015, quando foi sucedido por Marco
Polo Del Nero, então presidente da Federação Paulista. O que parecia ser uma
nova dinastia a frente da CBF, dado que o presidente eleito era relativamente
jovem, acabou se transformando na mais breve passagem de um presidente a frente
da CBF, que foi presidida por ele de maio a dezembro de 2015, quando renunciou
ao cargo após ser indiciado pela justiça norte-americana no mais grave caso de
corrupção da história do futebol mundial. Del Nero passou praticamente todo o
seu mandato sem poder viajar para o exterior: temendo que fosse ser preso pela
Interpol, ele não participou de nenhuma reunião da FIFA depois que Marin foi
preso, nem acompanhou a Seleção Brasileira nos quatro primeiros jogos válidos
pelas Eliminatórias.
O caso de corrupção na FIFA partiu
de investigações da Justiça dos EUA em torno dos contratos de organização da
Copa América Centenário, que lá foi realizada em 2016. Os primeiros
investigados a serem detidos foram Chuck Blazer, dirigente da Federação dos
Estados Unidos, o também norte-americano Aaron Davidson e o brasileiro José
Hawilla, estes dois últimos sócios na empresa Traffic, envolvida com direitos
de imagem de jogadores de futebol, contratos de televisionamento esportivo e
organização de eventos.
Em 27 de maio de 2015, a Polícia
Suíça interrompeu uma reunião na sede da FIFA em Zurique e prendeu sete
dirigentes acusados numa investigação do FBI que se iniciou em 2011, sob indícios
de corrupção na disputa pelo direito de sediar as Copas do Mundo da Rússia
(2018) e do Qatar (2022), além de contratos de marketing e televisionamento,
incluindo favorecimentos a empresas para a transmissão televisiva da Copa do
Mundo de 2014 no Brasil. Foram presos neste dia o presidente da CBF, José Maria
Marin, além de Jeffrey Webb (presidente da Concacaf - Confederação das Américas
Central e do Norte), o uruguaio Eugenio Figueredo (ex-presidente da Conmebol -
Confederação Sul-Americana), Julio Rocha (presidente da Federação da
Nicarágua), Costas Takkas (secretário geral da Concacaf); Rafael Esquivel (presidente
da Federação da Venezuela) e Eduardo Li (presidente da Federação da Costa
Rica). As investigações ainda levaram às prisões, nos meses seguintes, de Jack
Warner (ex-presidente da Concacaf), do paraguaio Nicolás Leoz (ex-presidente da
Conmebol), do argentino Alejandro Burzaco (executivo da TyC Sports, maior canal
esportivo da Argentina), de Sergio Jadue (presidente da Federação do Chile), e
dos empresários José Marguilles (brasileiro da Traffic) e os argentinos Hugo
Jinkis e Mariano Jinkis, pai e filho, sócios da Full Play Group, empresa
argentina de marketing esportivo.
Na segunda fase das
investigações, a Procuradoria Geral de Justiça dos Estados Unidos, atendendo às
investigações do FBI, denunciou, em dezembro de 2015, mais dezesseis pessoas
por recebeimento de suborno em contratos ligados a competições da Conmebol e
das federações nacionais. No caso da CBF, incluindo o contrato de material
esportivo da Seleção Brasileira assinado com a norte-americana Nike, maior
empresa de material esportivo do mundo. Eles foram indiciados sob as acusações
de conspiração para extorquir, fraude e lavagem de dinheiro. Foram indiciados
os mandatários Ricardo Teixeira, Marco Polo Del Nero, Juan Ángel Napout
(presidente da Conmebol), José Luis Meiszner (secretário geral da Conmebol),
Eduardo Deluca (ex-secretário geral da Conmebol), Romer Osuna (ex-tesoureiro da
Conmebol), Alfredo Hawit (presidente da Concacaf), Manuel Burga (presidente da
Federação do Peru), Carlos Chávez (ex-presidente da Federação da Bolívia), Luís
Chiriboga (presidente da Federação do Peru), Ariel Alvarado (ex-presidente da
Federação do Panamá), Rafael Callejas (ex-presidente da Federação de Honduras),
Brayan Jiménez (presidente da Federação da Guatemala), Rafael Salguero
(ex-presidente da Federação da Guatemala), Héctor Trujillo (secretário geral da
Federação da Guatemala) e Reynaldo Vázquez (secretário geral da Federação de El
Salvador).
As investigações por pagamentos
de suborno na escolha de países-sedes de Copa do Mundo ainda levaram à exclusão
do futebol do suíço Jerome Valcke, secretário geral da FIFA, e aos afastamentos
do francês Michel Platini (presidente da UEFA) e de suíço Joseph Blatter da
presidência da FIFA.
Humilhado dentro de casa em 2014 com os fatídicos
minutos que aniquilaram a Seleção Brasileira naqueles 7 x 1, e sob grave crise
de liderança fora de campo, vendo três presidentes da CBF indiciados numa mesma
operação internacional em 2015, o futebol brasileiro enfrentava, sem dúvidas, a
mais grave crise de sua história. E o momento indicava mais uma vez um estado
de comunhão entre o Brasil e a seleção, pois o triênio 2014-2016 foi um dos
mais difíceis da história para a sociedade brasileira. As mazelas inevitalmente
deixavam marcas sobre a liderança dentro de campo também. A Seleção Brasileira
de Futebol teve sérias dificuldades para se reerguer após tamanho golpe.
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