Em 50% dos jogos entre Brasil e Argentina houve brigas, mostra estudo
Jornalista se dedica à tarefa de reconstituir todos os confrontos entre as potências sul-americanas em livro de 616 páginas especial para apaixonados por futebol e historiadores
O futebol explica o mundo, escreveu o jornalista americano Franklin Foer, num livro muito saboroso. É um fenômeno único, apaixonante e misterioso. Já provocou guerras, acirrou disputas religiosas, interrompeu conflitos, ajudou diferentes governos autoritários, causou mortes e, mesmo assim, não deixa de dar alegrias a milhões de pessoas.
De todas as rivalidades que, historicamente, foram se construindo ao longo do tempo no futebol, o jornalista Newton Cesar de Oliveira Santos arrisca-se a dizer que a partida entre Brasil e Argentina “é o maior clássico do futebol mundial”.
No esforço de comprovar a sua tese, Santos dedicou-se à tarefa de reconstituir todos os confrontos entre as duas seleções. O resultado é um catatau de 616 páginas (mais de um quilo de livro), intitulado “ Brasil x Argentina – Histórias do maior clássico do futebol mundial (1908-2008)”, custeado pelo próprio autor.
É um livro essencial para historiadores e apaixonados por futebol. Santos toma o cuidado de tentar entender o futebol à luz da situação política e econômica de ambos os países em cada momento destes últimos 100 anos.
Mostra como o esporte se desenvolveu de forma semelhante no Brasil e na Argentina, “importado” inicialmente da Inglaterra para prazer das elites nacionais, antes de ganhar feição popular nos terrenos baldios – a nossa várzea e o “potrero” argentino.
Santos intui a existência de um estilo argentino e um brasileiro de jogar, duas “escolas”, muito distintas, mas não se alonga muito em especulações sobre as razões que levaram ao sucesso do futebol nesses dois países, nem ao desenvolvimento dessas duas maneiras diferentes de encarar o futebol.
A reconstituição feita pelo estudo mostra que em quase 50% dos jogos houve confusões, brigas ou expulsões. É uma história repleta de batalhas campais, graves manifestações de racismo, muito sangue, socos, pontapés e pernas quebradas. Mas também de partidas memoráveis, desfiles de craques de primeira grandeza, jogadas maravilhosas e gols inesquecíveis.
A rivalidade entre Brasil e Argentina é tão grande que os países não estão de acordo nem sobre as estatísticas do confronto.
Para a CBF, são 92 partidas, com 36 vitórias do Brasil, 33 da Argentina e 23 empates. De acordo com a AFA, são 93 confrontos, com 36 resultados positivos do Brasil, 34 da Argentina e 23 empates.
O jogo da discórdia ocorreu em 5 de dezembro de 1956, no Maracanã. Valia a Copa Raul H. Colombo e a seleção brasileira foi representada por um combinado do Estado da então Guanabara. Vitória argentina por 2 a 1, gols de Sanfilippo e Garabal, e de Índio. A AFA considera esse jogo como oficial, diferentemente da CBF.
A Argentina é seleção que o Brasil mais enfrentou. E o Brasil é o segundo maior adversário da Argentina, atrás do Uruguai. Não há no mundo, escreve Santos, duas seleções que tenham se enfrentado tantas vezes quanto Uruguai e Argentina.
Fruto de um trabalho de dois anos, com pesquisa nos dois países, “Brasil x Argentina” é um estudo que termina de forma aberta, à espera dos próximos confrontos entre as duas seleções, e com uma frase do diplomata Marcos de Azambuja, que sintetiza a rivalidade dentro e fora do campo. “Depois de muitas décadas, talvez séculos, de busca infrutífera para saber qual de nós é o melhor, chegamos à sábia conclusão que somos essencialmente parecidos”.
Newton Cesar de Oliveira Santos, autor de “Brasil x Argentina – Histórias do maior clássico do futebol mundial (1908-2008)” responde a cinco perguntas sobre a rivalidade entre os dois países:
Você acha que hoje ainda é possível falar em um estilo argentino e um estilo brasileiro de jogar? Como você os definiria?
Pelo fato de a maioria dos principais jogadores dos dois países se transferirem para a Europa cada vez mais cedo (Brasil e Argentina são os maiores exportadores de jogadores) e, com isso, terem de se adaptar ao estilo de jogo dito “europeu”, acredito que as características mais marcantes das duas “escolas de futebol” se perderam um pouco. Tanto assim que nos selecionados, nos últimos anos, os jogadores são convocados para se adaptarem ao estilo de jogo proposto – e não mais como antigamente, quando primeiramente se chamavam os melhores, e depois de definia a estratégia em campo (vide Zagallo em 1970 e Menotti em 1978). Ainda assim, ainda se vê, na imprensa especializada mundo afora, comentários acerca da “pegada argentina”, da “pressão ao estilo argentino”, do “amor à camisa argentina”, assim como se escuta sobre a “fantasia brasileira”, o “toque de bola típico brasileiro”, a “improvisação clássica do jogador brasileiro”. No futebol, como na economia e na sociedade, globalização e localização se chocam todo o tempo.
A primeira vez que jogadores brasileiros são chamados de “macaquitos” pela imprensa data de 1920. O problema perdura, aparentemente. A que você atribui isso?
Acredito que seja pela relação de amor e ódio que permeia o embate futebolístico entre dois países. O termo, preconceituoso, vem da época da Guerra do Paraguai (1865/1870), quando os soldados argentinos lutaram lado a lado com escravos brasileiros, se transpôs ao futebol como forma de distinção – eles, os “europeus”' da América do Sul, que chegaram a ser a quinta economia do mundo, e nós, com alto índice de analfabetos e grande quantidade de mestiços. Além disso, acho que existe um fator raramente citado que acabou se canalizando aos gramados: eles eram os melhores no futebol na América do Sul até a década de 1950 (vide conquistas de campeonatos sul-americanos). De repente, o Brasil ganha uma Copa do Mundo em 1958, em que o destaque foi um negrinho magricelo – enquanto eles voltaram humilhados pela derrota de 6 a 1 diante da Tchecoslováquia. Esse revés somente foi superado quando surgiu Maradona – branco, latino, rebelde, enfim, “argentino”, e o melhor da história, para eles. No fundo, acredito que seja menos pelo racismo em si e mais pela chacota que pegou – como se sabe, tem apelidos que “pegam” e outros que não.
Por que há tantas brigas em jogos entre Brasil e Argentina? Há alguma rivalidade semelhante a essa?
Sim, existem rivalidades que até superam a essa em número de partidas violentas (Argentina x Uruguai, Galatasaray x Fenerbaçe, Gre-nal, etc.). Atribuo as brigas entre brasileiros e argentinos ao fato de que essa partida se tornou, ao longo da história, “o jogo” a ser disputado. Pergunte a qualquer jogador, de ambos os lados, qual o confronto mais esperado/emocionante/vibrante do qual ele gostaria de participar. A vontade de ganhar é tamanha que abre espaços para excessos e, consequentemente, reações intempestivas e irracionais – isso ainda hoje, quando muitos dos jogadores são companheiros de clubes na Europa.
Brasil e Argentina se tornaram exportadores de jogadores. Isso não tira o brilho do clássico?
Não acredito. Por dois motivos: a) Nas partidas oficiais, os craques são chamados e vêm, de onde estiverem, para jogar o clássico. Exemplo: na imprensa argentina, e em meio aos jogadores, desde a derrota para o Equador, no mês passado, só se fala no confronto contra o Brasil dia 5 de setembro (mesmo porque a Seleção Argentina ficou inativa nesse período); b) apesar de grandes exportadores de craques (e de jogadores medianos, também), Brasil e Argentina são os maiores “produtores” de novos talentos – peças de reposição, diriam os comentaristas modernos. Exemplos: a Argentina é a maior vencedora dos Mundiais sub-20 (seis títulos), seguida pelo Brasil (quatro conquistas). Novos talentos sempre surgem, fato que alimenta a chama da esperança. Quando Messi começou a aparecer, era o “novo Maradona”. Agora, já se fala de um camisa 10 da seleção sub-17 que será o “novo Messi”. A exportação de jogadores tira o brilho, na minha opinião, dos torneios locais, em ambos os países.
Julio Grondona assumiu a AFA em 1979, Ricardo Teixeira preside a CBF desde 1989. Não parece estranho que dois países tão importantes na história do futebol mundial, como você mostra no livro, sejam dirigidos pelos mesmos cartolas há tanto tempo?
Na verdade, acho que “estranho” não seria a palavra mais adequada para descrever essa situação. Ao contrário, seria esperado que algo assim ocorresse. Por quê? Nos dois países, o futebol é a expressão cultural mais importante e poderosa. Portanto, seria de se esperar que atraísse gente “poderosa”, capaz de relacionar-se muito bem com os dirigentes de futebol e políticos locais e, ao mesmo tempo, com os cartolas da Conmebol e da Fifa. De um lado, um chegou ao poder pela influência do ex-sogro, que comandou a Fifa por décadas, e desde que assumiu o primeiro mandato soube trilhar o caminho do continuísmo respaldado pelos títulos do selecionado nacional, pelos contratos milionários com patrocinadores e pelo enriquecimento das federações estaduais – que, em última instância, são quem definem o máximo dirigente da CBF. O outro vem de família vinculada ao futebol e assumiu o comando da AFA logo no início da era Maradona – coroada de títulos e glória, portanto. Diga-se de passagem, ambos venceram eleições e superaram seus adversários (especulações sobre os meandros de cada pleito, por ora, não passam de especulações). Além disso, conscientemente ou não, parece valer para os dirigentes a máxima que vale para os clubes: em time que está ganhando não se mexe...
Fonte: Portal IG, publicado em 23 de julho de 2009
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