Fonte original: http://www.footurefc.com.br/blog/a-genese-do-4-2-4-e-a-moldura-de-nossa-escola-parte-i/
A forma de pensar o futebol (estratégia) e as disposições táticas (esquemas) possuem, entre si, uma relação de independência e harmonia, sendo necessária a análise dos dois institutos para que se entenda como a forma de enxergar o jogo influência na mudança dos desenhos táticos e vice versa.
Nossa viagem pelo processo evolutivo tático começa com o britânico Jimmy Hogan, sendo a ele conferidas as paternidades do futebol moderno e do futebol total. Para muitos, Hogan foi o primeiro grande mestre ideológico do futebol, influenciando escolas por todo o mundo. Como ideólogo, sempre questionou as ligações diretas e a rigidez repetitiva do futebol inglês, enxergando no esporte uma amplitude de possibilidades e de variações que só seriam possíveis com o domínio inteligente da bola, procurando sempre levá-la até o gol através de toques curtos e objetivos.
Por isso a ele também é conferida a criação da escola de toque centro-europeia, base tática e estratégica que invadiu o futebol no início do século XX com seus preceitos. À época, o sistema tático que dominava a prática do esporte era o 2-3-5, sendo que a forma de jogar inglesa se limitava aos lançamentos para os atacantes dos flancos e aos cruzamentos para a área adversária. Em que pese o amadorismo do início do Século XX, já existiam na Europa a fomentação de conceitos e a caracterização de escolas.
No final do século XIX, havia na Europa a escola britânica e a escola escocesa, sendo esta desenvolvida para combater o jogo de força física e velocidade dos ingleses conhecido como "kick and run", ou seja, o privilégio da força e, sobretudo, da velocidade, das disparadas pelo lado com os wingers, que eram os pontas velozes e individualistas. Para combater o 1-2-7 extremamente físico, os escoceses criaram o 2-2-6 e uma estratégia de passes rápidos e curtos que incentivava a criação de linhas de passe. Controlar o jogo era a forma de frear a força e a velocidade inglesa.
A partir do 2-2-6 escocês, de acordo com Jonathan Wilson, surgiu a primeira variação tática da história. Com o objetivo de promover o jogo, de unir à velocidade lateral a possibilidade de proposição através de passes, o futebol inglês abriu mão de um dos centroavantes que compunham a linha de sete na frente e, baseados no mais compacto 2-2-6 escocês, recuaram mais um centroavante para o meio de campo, transformando-o no center-half, o meia central, o organizador, aquele que deveria articular a saída de jogo, distribuir os passes para o time avançar.
Nascia o 2-3-5, esquema classificado por Jonathan Wilson como "pirâmide" pelo formato que desenha no tablado. Procurava-se à época transformar o futebol em uma prática mais coletiva, com raciocínio tático e variação estratégica. Mas o 2-3-5 e o seu centromédio organizador não mudaram as essência das escolas, nem a inglesa com sua rigidez e apreço pela correria individualista lateral e nem a escocesa que privilegiava o controle da pelota em passes curtos e o incentivo constante de linhas de passe.
Do final do século XIX até 1930, o 2-3-5 foi a base tática do futebol e Hogan não fez nenhuma alteração substancial neste desenho tático. Sua atuação era mais profunda e se dava no campo estratégico, na forma de pensar, evoluir e executar o jogo de forma mais técnica, leve, espalhando fluidez no transbordar de passes rumo ao gol. Os britânicos corriam pelas beiradas e os escoceses, assim como húngaros e austríacos, valiam-se dos passes curtos. Ambas as escolas viviam suas filosofias sob a plataforma rudimentar do 2-3-5, comum a todas no aludido tempo histórico.
De acordo com Wilson em sua obra "Inverting the Pyramid", o futebol começou a evoluir na Europa Central e na América do Sul, locais onde a forma britânica de jogar não agradava aos atletas e exercia influência menor. Apesar de ser o berço do futebol moderno e escola difusora do 2-3-5 usado à época, não foi em terras britânicas que o futebol evoluiu e ganhou brilho, técnica e talento em sua execução. Apesar da propagação da pirâmide, na Europa Central e na América do Sul a rigidez deu lugar a uma execução mais sutil do esquema.
Como o futebol era pratica física das escolas públicas inglesas, os atletas, desde muito novos, eram moldados na velha forma pré-concebida de executar o futebol, o que dificultava o desenvolvimento do esporte. Na Europa Central o futebol disseminou com outro aspecto, em meio à classe trabalhadora urbana, sendo enxergado de forma mais ambiciosa e, ao mesmo tempo, romântica. Despidos das crenças inglesas, o futebol respirou a liberdade que precisava para se tornar o esporte mais amado do planeta.
Tal contexto foi perfeito para os ensinamentos de Jimmy Hogan se disseminarem em países do centro da Europa. Wilson entende que Hogan foi o maior professor da escola escocesa. Sua paixão pelo futebol de toque escocês nasceu nos tempos de jogador, quando aprendeu sobre a filosofia com colegas de clube que eram escoceses. Rapidamente, o jovem Jimmy se apaixonou pelo futebol de toques, iniciando seus aprendizados táticos que cada vez mais o afastava da forma inglesa de se jogar futebol. Treinos com bola e aprimoramentos técnicos que propiciavam o controle do jogo enfeitiçavam Hogan.
Com apenas 30 anos, Jimmy Hogan se tornou treinador. Desiludido com o futebol praticado nos campos ingleses iniciou sua carreira nos países baixos. Foi para a Holanda disseminar suas ideias que incluíam treinamentos com bola, treinamento de fundamentos e disciplina tática para dominar o jogo com posse e passes curtos. Longe de sua terra natal, Hogan foi o primeiro treinador a explicar táticas para seus jogadores através de diagramas que relacionavam a movimentação da bola e dos atletas.
Essa breve passagem inicial nos campos holandeses lhe credita ter sido o responsável pelo apego tático e ao profissionalismo praticados no futebol holandês até os tempos modernos. No verão de 1912, Hogan procurava trabalho como treinador de futebol. Enquanto isso, outro grande treinador e admirador do futebol escocês, um pioneiro do futebol austríaco e da Europa, Hugo Meisl, procurava um treinador para transformar a seleção austríaca na melhor equipe de futebol do continente. Para a sorte do esporte, o casamento foi perfeito: Hogan virou um grande amigo de Meisl e seu ilustre mentor tático.
O ambiente dos debates táticos nos cafés de Viena fomentou a criatividade de Jimmy que facilmente juntou-se ao espírito visionário de Meisl. Como descreveu Wilson, foi uma combinação perfeita o mundo do futebol austríaco com as ideias de Hogan. Ele foi nomeado por Meisl para trabalhar e promover o avanço tático e da qualidade técnica dos atletas dos principais clubes austríacos. Mas, o escopo principal era preparar a seleção austríaca para as Olimpíadas de Estocolmo, programada para 1916.
A primeira sessão de treinamento promovida por Hogan não foi muito bem aceita pelos atletas austríacos, que a acharam difícil de entender. Entretanto, por outro lado, Meisl se viu encantado com a forma de enxergar o jogo ensinada por Hogan, uma espécie de contextualização dos preceitos da escola escocesa ao tempo histórico em que se encontravam. Taticamente, Jonathan Wilson não assinala um novo desenho tático, sendo usada pela dupla Hogan e Meisl a base tática dos últimos trinta anos à época, qual seja, o 2-3-5.
A base metodológica de Hogan também se baseava em uma movimentação mais inteligente, menos rígida e mais imprevisível. Tanto ele quanto Meisl acreditavam que era necessário fazer a bola girar, com combinações rápidas através de passes curtos. Aqui nascia o preceito tático da aproximação de atletas e setores para propor jogo, mesmo que de forma arcaica. Cabe ressaltar que Hogan também privilegiava os lançamentos longos, porém com precisão. Ele foi o primeiro treinador a se preocupar com as viradas de jogo para surpreender.
Infelizmente, a Primeira Guerra Mundial não permitiu a Hogan disputar as Olimpíadas. Além de evaporar o sonho da glória olímpica, o início da guerra transformou Jimmy em "inimigo", afinal era um inglês em solo austríaco. O treinador se foi, mas seus conhecimentos ficaram com Meisl. Durante os anos do conflito, Hogan foi recrutado pelo MTK de Budapeste, na Hungria. Em solo húngaro, ao chegar, logo se empolgou com a forma elegante e esguia que os húngaros praticavam o esporte, características do futebol praticado na Europa Central que o próprio treinador outrora já ajudara a disseminar.
Jimmy soube aproveitar essa forma de jogar que casava perfeitamente com a fluidez tática que tanto prezava. Sabiamente, aproveitou a filosofia de toque arcaica dos húngaros e melhorou gradualmente sua qualidade técnica e sua compreensão tática. Tal metodologia trouxe títulos e encantou o ainda diminuto circuito do futebol. O MTK conquistou títulos em 1917 e 1918 e encantou com um futebol envolvente e a frente de seu tempo histórico. Hogan era uma mistura rara de romantismo e pragmatismo, talento e coletividade.
Sua passagem pelo futebol húngaro foi tão efêmera quanto na Holanda e na Áustria; entretanto, mais uma vez, Hogan plantou a semente de seu futebol. Sua filosofia e os seus métodos são considerados a base ideológica do selecionado mágico da Hungria que encantou o mundo na década de 1950. Hogan influenciou Gustav Sebes, outro nome que devemos guardar quando se trata de evolução tática. Gustav foi um dos jovens que se encantaram com Jimmy, que trabalhou intensamente com os garotos húngaros, sempre demonstrando prazer em ensiná-los a arte do jogo.
O movimento rápido da bola e a movimentação pré-ordenada sistêmica se manteve no futebol da Hungria por muitas gerações. Ao final da goleada contra a Inglaterra, em 1953, Sebes contou ao mundo que eles jogaram da forma como Hogan havia lhes ensinado. Foi uma homenagem honrosa e justa para esse revolucionário do futebol e, talvez, o treinador mais influente na evolução tática histórica. Logo após o final da Primeira Guerra Mundial, Hogan retornou para a Inglaterra.
Quando deixou o cargo de técnico do MTK, Hogan foi substituído por um de seus atletas mais experientes, Dori Kurschner, que, mais ou menos vinte anos depois, seria crucial para o desenvolvimento do jogo no Brasil, sobretudo influenciando Flávio Costa a criar suas diagonais, outro embrião do 4-2-4. Muitos apaixonados pela história da evolução estratégica do esporte possuem dificuldade de entender porque o 4-2-4 tem essa ramificação no seu nascimento, sendo seu ponto em comum os ensinamentos de Hogan.
Enfim, podemos dizer que Jimmy proferiu ensinamentos modernos que marcaram um ponto final com a execução rígida e direta do 2-3-5, sendo a flexibilização do desenho o ponto de partida para os próximos degraus da evolução tática e estratégica do futebol. Hogan foi o primeiro profissional da bola a desenvolver e ensinar pelo mundo uma nova forma de conceber o esporte, tanto no desenvolvimento profissional quanto no aspecto teórico. Muitos mestres da história do futebol o classificam como uma espécie de representação da gênese do desenvolvimento tático e estratégico.
De sua mente surgiu a grande maioria das ideias modernas no que concerne ao plano tático, técnico e ao condicionamento físico. Sem ele, o futebol simplesmente não seria o jogo taticamente diversificado, organizado e profissional da forma como o conhecemos. Jimmy era um profeta do futebol e suas concepções continuam consagradas como princípios executórios essenciais da prática moderna. Suas sementes se espalharam pelo mundo, o que ajudou a criar esquadrões na Europa e na América do Sul.
A aplicação diferenciada do 2-3-5 brilhou na Europa com o "Wunderteam", alcunha dada ao selecionado austríaco que trouxe em sua execução a proposta de Hogan de forma mais nítida. Em meio aos embates ideológicos da escola inglesa e da escola escocesa, surge o W.M. de Herbert Chapman.
Os treinadores húngaros chegaram ao futebol brasileiro, sendo esta um fator exponencial na evolução tática e moldagem de Escola Brasileira.
Acima está o 2-3-5 da seleção austríaca montada por Meisl e Hogan que encantou o mundo no início da década de 30, seleção que, como já informado, ficou conhecida como "Wunderteam". Entre suas benesses para a evolução tática e estratégica, encontramos o primeiro "falso 9" da história do futebol, o craque austríaco Sindelar, que desmontava as defesas adversárias saindo da área e abrindo espaço para as verticalizações rumo ao gol adversário.
Referências bibliográficas:
Livro “Inverting the Pyramid”, do autor inglês Jonathan Wilson.
http://www.futebolmagazine.com/jimmy-hogan-o-pai-que-o-futebol-esqueceu
http://wp.clicrbs.com.br/prelecao/2009/12/30/as-primeiras-escolas-classicas-de-futebol/?topo=77,1,1&status=encerrado
http://www.clicrbs.com.br/blog/jsp/default.jsp?source=DYNAMIC,blog.BlogDataServer,getBlog&uf=1&local=1&template=3948.dwt§ion=Blogs&post=259798&blog=558&coldir=1&topo=4238.dwt
https://www.passion4fm.com/evolution-of-barcelonas-tiki-taka-playing-style/
https://equaliserblog.wordpress.com/2010/10/23/1-hogan/
https://www.theguardian.com/football/2003/nov/22/sport.comment2
https://www.passion4fm.com/evolution-of-barcelonas-tiki-taka-playing-style/
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