Matéria publicada na Revista SuperInteressante, Edição 202a, Agosto de 2004
Para muitos torcedores brasileiros, Pelé é rei. Para muitos argentinos, Maradona é deus. Afinal, na disputa entre os dois maiores craques da história do futebol, quem foi melhor: Pelé ou Maradona? Há controvérsias, mas não vamos ficar em cima do muro. Chegou a hora do grande tira-teima!
O camisa 10 recebe a bola no meio do campo. Jogadores do time adversário o cercam e tentam pará-lo de qualquer maneira. O primeiro marcador se aproxima e vê a bola passar por debaixo das pernas. Vem o segundo e também leva no meio das canetas. Aparece mais um para dar o bote e, olé!, também passa batido. Não, essa não é a descrição do célebre lance que fez a fama do argentino Diego Maradona. Na partida contra a Inglaterra, pela Copa do Mundo de 1986, no México, ele driblou quatro jogadores, deixou o goleiro no chão e mandou a bola para o fundo das redes, marcando aquele que é considerado, por muitos, o gol mais bonito de todos os tempos.
Mas o camisa 10 de que estamos falando é o homem que transformou esse número em sinônimo de arte e genialidade no futebol: Pelé.
Enquanto o golaço de Maradona foi visto e revisto em todo o mundo, ao vivo e em cores, pouca gente testemunhou um lance parecido de Pelé durante um amistoso do Santos nos anos 60. O craque argentino explodiu numa época em que a televisão já chegava a todos os rincões do planeta. Já o brasileiro conseguiu se tornar uma lenda viva praticamente só com a ajuda das ondas do rádio. Agora, algumas de suas jogadas mais espetaculares foram resgatadas pelo filme Pelé Eterno, que estreou em junho. Segundo o próprio Pelé, o filme, dirigido por Aníbal Massaini, vai acabar, de uma vez por todas, com uma questão que vem dividindo os fãs de futebol nas últimas duas décadas. Afinal, quem foi melhor: Pelé ou Maradona?
O apresentador esportivo Milton Neves, da TV Record e da Rádio Jovem Pan, é categórico: essa polêmica só existe porque Maradona contou com a força da mídia. “Pelé não teve 1% da divulgação que Maradona teve”, diz Neves. “O futebol brasileiro produziu outros grandes jogadores, como Friedenreich e Leônidas da Silva, que não tiveram nem o rádio para ajudar a difundir os seus feitos. Por isso, não são reconhecidos como deveriam.” Neves vai mais longe: “Vamos ter um novo Maradona a cada 200 anos. Pelé, nunca mais”.
As imagens históricas de Pelé recuperadas pelo filme de Massaini incluem dois lances não registrados na época e que foram recriados por computação gráfica. Um deles é o célebre gol marcado contra o Juventus, na rua Javari, em 1959, quando Pelé aplicou uma seqüência de chapéus em quatro adversários e fez o gol de cabeça. O outro é a reconstituição de um lance contra o Fluminense, no Maracanã, em 1961, um gol tão belo que rendeu ao astro do Santos uma placa comemorativa no estádio – cunhando a expressão “gol de placa”.
Pelé Eterno entrou em cartaz num momento em que Maradona travava uma luta de vida ou morte contra o mais terrível dos adversários, as drogas. “Estou orando muito para que Maradona se recupere bem e saia dessa. Assim, quando estiver bom, ele verá o filme e tirará suas próprias conclusões”, afirmou Pelé no lançamento de sua cinebiografia. As provocações entre os dois sempre existiram. Para Pelé, Maradona, ao se envolver com as drogas, perdeu a oportunidade de servir de exemplo para os jovens. O argentino, por sua vez, já declarou suas restrições ao que Pelé fez ou deixou de fazer com sua imagem de “atleta do século”. “Pelé, como jogador, foi o máximo, mas não soube aproveitar isso para enaltecer o futebol. Adoraria que ele tivesse se proposto, como eu, a presidir uma associação que defendesse os direitos dos jogadores, que tivesse ajudado Garrincha e não o deixado morrer na miséria, que tivesse lutado contra as ações dos poderosos que nos prejudicam”, escreveu Maradona em sua autobiografia.
Em 2000, quando a Fifa realizou no seu site uma enquete para eleger o melhor jogador de todos os tempos, Pelé levou uma surra de Maradona. O argentino teve 53% dos votos, contra apenas 16% do brasileiro. Para resolver a saia justa, o suíço Joseph Blatter, presidente da entidade, decidiu conceder dois prêmios: um pelo voto dos treinadores das seleções dos países filiados à Fifa, outro pelo voto popular via internet. Pelé e Maradona ganharam cada um o seu prêmio, agradando a gregos e troianos – ou desagradando a ambos.
O argentino Edgardo Norberto Andrada teve o privilégio de enfrentar os dois jogadores. Goleiro do Vasco de 1969 a 1976, encarou Pelé nos confrontos contra o Santos. Depois, encerrou a carreira no argentino Colón e conheceu o “Pibe” Maradona em início de carreira, no Argentinos Juniors. “Pelé foi um jogador muito mais completo que Maradona”, afirma Andrada. “Tinha um excelente cabeceio, chutava bem tanto com a direita quanto com a esquerda, sabia livrar-se da marcação como ninguém e tinha uma habilidade extraordinária que o tornava capaz de chutar a gol de qualquer posição com a bola em movimento.”
Andrada ficou famoso como o goleiro que levou o gol número 1 000 de Pelé, de pênalti, no dia 19 de novembro de 1969. “Na época, não gostei de ter levado o milésimo gol do Pelé. Hoje sei que aquele gol marcou a minha carreira e foi uma honra ter participado de um momento histórico do futebol”, diz Andrada.
Maradona nem chegou perto da marca do rei. Em 695 jogos na carreira, marcou 365 gols. Sua média foi de 0,52 gol por jogo, contra 0,93 de Pelé. Os fãs de Dieguito podem argumentar que ele jogou 11 anos na Europa, nos disputadíssimos campeonatos espanhol e italiano, enquanto Pelé fez com o Santos dezenas de jogos contra times inexpressivos do Brasil e ainda passou três temporadas nos Estados Unidos.
Jogando sem bola
Sejam quais forem os argumentos a favor de um ou de outro, há nítidas diferenças de estilo. Maradona foi um grande malabarista com a bola. Nos treinos na Argentina, se exibia para os colegas fazendo centenas de embaixadinhas com uma bolinha de tênis, uma laranja ou outro objeto. Conseguia controlar a bola em velocidade, tornando quase impossível a qualquer adversário lhe tirar a pelota. Mas a falta de força e precisão nos chutes com o pé direito e a pouca impulsão – prejudicada pela baixa estatura (1,66 metro) – evidenciavam que o argentino não era completo em todos os fundamentos.
Pelé, ao contrário, sabia jogar sem a bola. Era capaz de driblar seus adversários sem sequer tocá-la, como fez com o goleiro uruguaio Mazurkiewski no histórico “drible da vaca”, durante a Copa do Mundo de 1970, no México. A bola passou por um lado, Pelé por outro e Mazurkiewski ficou no meio do caminho sem entender nada. Para sua sorte, Pelé fez o mais difícil e chutou para fora. Um lance que não resultou em gol, mas que é lembrado até hoje como um dos mais sensacionais de todos os tempos.
O craque brasileiro tinha um biotipo mais favorável que o argentino para o esporte. “Fisicamente, Pelé era um jogador muito mais completo que o Maradona”, diz o fisiologista Turíbio Leite de Barros Neto, diretor do Centro de Medicina da Atividade Física e do Esporte da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Segundo ele, a compleição física de Pelé lhe permitiria ter sido um excelente jogador em qualquer posição do futebol: lateral, volante, zagueiro, centroavante e até goleiro. Pelé, aliás, jogou quatro vezes improvisado como goleiro, substituindo o arqueiro do Santos que teve de deixar a partida antes do término. No total, ficou 54 minutos debaixo da trave – e não levou nenhum gol. Um desempenho melhor que o do seu filho Edinho, que, por ironia do destino, viraria goleiro do Santos.
Também fora do campo, cada jogador tinha seu estilo. Ambos nasceram em famílias pobres e conseguiram a ascensão social graças ao futebol. Depois de se tornarem celebridades, trilharam caminhos bem distintos. O brasileiro adotou a postura de um embaixador. Em qualquer país do mundo, citar o nome de Pelé pode ser o primeiro passo para um contato amistoso com o povo local. Ele foi recebido e reverenciado por autoridades como a rainha Elizabeth II, o presidente americano Richard Nixon, o papa João Paulo II e o líder sul-africano Nelson Mandela. Quando marcou o milésimo gol, Pelé dedicou o feito às crianças pobres do Brasil, dizendo que elas precisavam de mais atenção. Foi tachado de demagogo por setores de esquerda que lutavam contra a ditadura no país, mas a proliferação da miséria e da criminalidade infantil mostraria que Pelé tinha razão.
Já Maradona vestiu a pele de um revolucionário. Aliou sua imagem à dos líderes da revolução cubana – o guerrilheiro Che Guevara, que ornamenta o braço do ex-jogador em uma sinuosa tatuagem, e o presidente Fidel Castro, que o recebeu em Cuba para um ineficiente trabalho de desintoxicação das drogas. “Maradona é uma espécie de Che Guevara. Dá uma idéia de maior rebeldia, enquanto Pelé aparece como um símbolo mais institucionalizado. São como duas caras da mesma moeda. Um necessita da existência do outro”, afirma o jornalista e sociólogo argentino Sergio Levinsky, autor do livro Maradona, Rebelde sem Causa.
Contrastando com a postura diplomática de Pelé, Maradona foi para os argentinos um autêntico herói nacional, capaz de devolver a dignidade e a esperança perdidas com a crise de valores deflagrada pelo golpe militar de 1976 e acentuada pela derrota para os ingleses na Guerra das Malvinas, em 1982. Ainda mergulhados em uma crise econômica sem precedentes, os argentinos se prendem à figura de Maradona como se fosse uma divindade, como haviam feito durante o martírio de Carlos Gardel e Evita Perón. A idolatria é tamanha que existe até uma corrente religiosa, a Igreja Maradoniana, que trata o jogador como um deus – entre os Dez Mandamentos está o de “amar Maradona sobre todas as coisas”.
Se a vida de Pelé chegou às telas do cinema, o mesmo deve ocorrer com o craque argentino. O diretor italiano Marco Risi prepara o lançamento de um filme sobre Maradona e já tem até o ator preferido para o papel de Diego: o mexicano Gael García Bernal, que viveu o jovem Che Guevara em Diários de Motocicleta, de Walter Salles. Desse jeito, Bernal vai acabar se especializando em interpretar mitos argentinos com espírito revolucionário.
O raio X dos craques
Compare as principais características das duas feras
PELÉ
Edson Arantes do Nascimento
Nasceu em 23/10/1940, em Três Corações (MG)
Altura: 1,74 metro
Peso: 70 kg (1970)
Olhar: Com sua visão periférica, é capaz de enxergar o que acontece ao seu redor ou mesmo a longa distância sem tirar o olho da bola
Liderança: Era um dos líderes do Santos e da seleção brasileira, embora não tenha sido o capitão
Perna: Destro, mas chutava bem tanto com a direita quanto com a esquerda
Chuteira: Número 39
Clubes em que atuou
Santos (1956 a 1974)
New York Cosmos (1974 a 1977)
Títulos na carreira: 59
Maiores conquistas
Tricampeão mundial com a seleção brasileira (1958, 1962 e 1970)
Bicampeão mundial com o Santos (1962 e 1963)
Bicampeão sul-americano com o Santos (1962 e 1963)
Pentacampeão da Taça Brasil com o Santos (1961 a 1965)
10 vezes campeão paulista com o Santos (1958, 60, 61, 62, 64, 65, 67, 68, 69 e 73)
1 282 gols em 1 375 jogos (Média de 0,93 gol por jogo)
Copas do Mundo
4 participações (1958, 1962, 1966 e 1970), 3 títulos (1958, 1962 e 1970), 14 jogos e 12 gols
Por que Pelé foi melhor?
1) Ganhou muito mais títulos na carreira e foi tricampeão mundial, enquanto Maradona ganhou apenas um título mundial
2) Foi duas vezes campeão mundial de clubes, coisa que Maradona nunca chegou perto de conseguir
3) Fez 3,5 vezes mais gols que o argentino
4) Foi perfeito em todos os fundamentos: chute com o pé direito, chute com o pé esquerdo, dribles, lançamentos, cabeceio
5) Pelo seu talento e porte físico, Pelé teria sido bom em qualquer posição do futebol: lateral, zagueiro, ponta e centroavante. Até como goleiro ele jogou, e bem. Maradona só podia ser o que foi: ponta-de-lança.
MARADONA
Diego Armando Maradona
Nasceu em 30/10/1960, em Lanús (Argentina)
Altura: 1,66 metro
Peso: 70 kg (1986)
Olhar: Visão centrada na bola e no lance próximo de si
Liderança: Foi capitão e líder da seleção argentina, do Boca Juniors e do Napoli (Itália)
Perna: Canhoto, fazia tudo com a perna esquerda – só com a esquerda. Era um ótimo cobrador de faltas
Chuteira: Número 39
Clubes em que atuou
Argentinos Juniors (1976 a 1980)
Boca Juniors (1980 a 1982 e 1994 a 1997)
Barcelona (1982 a 1984)
Napoli (1984 a 1991)
Sevilla (1992 a 1993)
Newell’s Old Boys (1993 e 1994)
Títulos na carreira: 11
Maiores conquistas
Campeão mundial sub-20 com a seleção argentina (1979)
Campeão mundial com a seleção argentina (1986)
Bicampeão italiano com o Napoli (1987 e 1990)
Campeão da Copa da Uefa com o Napoli (1988)
365 gols em 695 jogos (Média de 0,52 gol por jogo)
Copas do Mundo
4 participações (1982, 1986, 1990 e 1994), 1 título (1986), 21 jogos e 8 gols
Por que MARADONA foi melhor?
1) Ele conduziu, a conquistas inéditas, times medianos que nunca haviam ganhado nada, como o Argentinos Jrs. e o Napoli
2) Ele carregava o time nas cos-tas. Jogava ao lado de companheiros me-díocres, enquanto Pelé sempre teve bons jogadores ao seu lado
3) Mesmo atuando em uma equipe mal organizada como a Argentina de 1990, foi vice-campeão do mundo
4) Depois que parou de jogar, a Argentina não ganhou mais título. Já o Brasil foi duas vezes campeão do mundo sem Pelé
5) Foi um dos melhores jogadores da história do Campeonato Italiano, um dos mais difíceis do mundo
Fora de campo, um empate técnico
Filhos fora do casamento, escândalos e pisadas na bola
O legado de Edson Arantes do Nascimento e Diego Armando Maradona longe dos campos é um festival de bolas fora. Os dois tiveram filhos em relações extraconjugais. Pai de Kelly Cristina, Jennifer e Edinho, do casamento com Rosemary Cholby, e dos gêmeos Joshua e Celeste, frutos da união com Assíria Seixas Lemos, Pelé teve de reconhecer a paternidade de Sandra Regina Machado, 39 anos, e Flávia Cristina Kurtz de Carvalho, 34 (só mantém vínculo afetivo com a segunda). Já Maradona, pai de Dalma e Giannina, do casamento com Claudia Villafañe, foi obrigado a reconhecer a paternidade de Diego Armando Maradona Jr., hoje com 18 anos, filho de um relacionamento com a italiana Cristina Sinagra.
Além do envolvimento com as drogas, que mancharam sua imagem de esportista, Maradona foi condenado a dois anos de prisão por disparar sua espingarda de ar comprimido contra jornalistas que estavam no portão de sua casa, em 1994. Outra coisa que pegou mal para Maradona é sua amizade com o empresário Guillermo Coppola, suspeito de ligações com o tráfico de drogas e a máfia italiana.
Pelé, por sua vez, foi durante muitos anos sócio de Hélio Viana, que envolveu a empresa dos dois em escândalos finan-ceiros, como o desvio de uma verba de 700 mil dólares da Unicef.
Este ano, a pedido da Fifa, Pelé elaborou uma lista com 100 nomes dos maiores jogadores da história do futebol que ainda estão vivos. Incluiu jogadores medíocres como o sul-coreano Hong Myung-bo e o turco Emre, deixando de citar craques que o ajudaram a conquis-tar títulos para o Brasil, como Gérson, Tostão, Nilton Santos e Rivellino, que ficaram magoados com o esquecimento.
Livros
Pelé: os Dez Corações do Rei, de José Castello, Ediouro
O autor exalta o poder do mito criado em torno da figura de Pelé em uma biografia centrada na carreira do ídolo em sua época de jogador.
Yo soy el Diego, de Diego Maradona, Editorial Planeta
Autobiografia em que Maradona revela detalhes interessantes de sua carreira, incluindo o seu envolvimento com as drogas
Saiba também: Jogadores Sub-20 com maior destaque em Copa do Mundo
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