sábado, 7 de junho de 2014

Vocês vão ter que me engolir!

A relação de Mário Jorge Lobo Zagallo com a imprensa paulista era complicada desde muito tempo. Desde que Zagallo barrou Pepe no time titular do Brasil nas Copas de 1958 e 1962. Desde quando Zagallo se subjugou a ser o "treinador a Ditadura" e aceitou levar Dadá para a Copa de 70 no lugar do várias vezes artilheiro do campeonato paulista, Toninho Guerreiro. Na Copa de 94, Zagallo, como assistente de Parreira, era uma espécie de pára-raios; era quem aparecia para o "embate" com os jornalistas nas coletivas de imprensa, era quem comprava as brigas, a maioria delas com "jornalistas da velha guarda paulistana", um deles em especial, Juarez Soares.

Um evento simbólico do turbilhão pelo qual passava a Seleção: em 1 de julho de 1994, Evandro Carlos de Andrade escreveu um artigo no jornal carioca O GLOBO que foi uma bomba. O título era "Tudo Certo", e embutia uma crítica e uma provocação aos comentaristas da paulista Rede Bandeirantes, principais críticos naquele momento da campanha da Seleção Brasileira.

Nas palavras de Evandro: "Dos vários fatores que me sustentam a esperança de comemorarmos a quarta conquista da Copa do Mundo, nenhum tem o peso da tranquilidade demonstrada e oferecida pela dupla Parreira-Zagallo. Nem mesmo Romário, porque é evidente que tem estado em campo só para a conta do chá: o golzinho indispensável e classificador; no mais, é claro que por medo de tornar realidade aquela ameaça de distensão na virilha, ele tem escondido o jogo. Tem até razão: dessa maneira, concede tempo ao tempo para consolidar a cura e soltar o freio na reta final.
Meu assunto, porém, é a dupla formada pelo técnico principal e o que o auxilia. Neles, muito admiro, mas sobretudo a força de caráter e convicção. Daí deriva a coerência, que estruturou com paciência uma equipe poderosa, habilitada para ganhar a Copa.
Contra o seu trabalho, ergue-se a bulha dos comentaristas profissionais e dos demais palpiteiros que, como eu, formam um povo apaixonado por futebol. Infelizmente, não estamos tecnicamente preparados para sustentar a oposição ao que Parreira e seu conselheiro decidem. É tudo comentarista de resultado. Os mais experientes, e que ganham para isso, quando sentem perigo de vitória da seleção brasileira, vão subindo no muro devagarzinho, preparando-se para elogiar a contragosto, caso a porcaria da seleção acabe mesmo irritantemente campeã.
Tomo por exemplo o comentarista Mário Sérgio. Ex-ponta-esquerda razoável e notavelmente indisciplinado, ele passou à categoria de crítico de futebol, com breve interrupção para uma experiência como técnico, boa mas concluída com a conquista do campeonato paulista pelo seu concorrente.
Com esse acervo, ele deita e rola na TV. Debocha de Zagallo, como se fosse possível cotejar as duas biografias. Quarta-feira passada, escalou uma seleção ao seu gosto, toda com jogadores que ficaram no Brasil. Corrige erros de português de Parreira. No dia da estréia do Brasil, o título do artigo que publicou era "Tudo errado", referindo-se ao nosso time.
Bem, como detesto unanimidades, fiel à sábia observação de Nélson Rodrigues de que todas elas são burras, peço licença para dizer que estou orgulhoso de nossa seleção. Está aí invicta, cinco gols de saldo, enquanto todas as outras se embolam com resultados e climas complicados. A atitude dos jogadores até agora é impecável. Se estão antipáticos, não podem merecer elogios por isso, mas têm o direito, desde que ajam educadamente como vêm agindo. Nenhum foi expulso de campo, nenhum está impedido por cartões amarelos de passar à nova fase, o grupo voltou como primeiro da chave ao "lar" de Los Gatos.
Vai-se ouvir comentarista, a impressão é que os brasileiros são um vexame só. E começa-se a desmerecer antecipadamente a própria conquista do título, como se trazê-lo não passasse de obrigação. Os outros não estão jogando nada, dizem agora, depois de terem descoberto indizíveis maravilhas na Colômbia, na Romênia, na Nigéria, para não falar na Arábia e no México. Como se nas outras Copas houvesse uma inflação de equipes maravilhosas.
Compara-se a atual, para denegri-la, com seleções brasileiras que nunca existiram, seleções de sonho. É como se não tivéssemos à disposição filme ou videotape das campanhas em que o Brasil brilhou. Pois eu de vez em quando vejo um ou outro. E o que vejo são jogadas maravilhosas entremeadas de erros incríveis. Outro dia mesmo, revi pela enésima vez Brasil x Inglaterra de 1970. A Inglaterra jogou um pouco melhor e se a sorte não nos ajudasse bem podíamos ter tropeçado ali. Quantos passes errados, quantos chutes às nuvens, que defesa medíocre! Na final de 58, contra a indigente Suécia, terminada com goleada e glória, quanta bobagem, a começar pelo frango inaugural engolido pelo Gilmar!
A atual seleção erra, e é claro que não tem no meio de capo um lançador como Didi ou Gérson. Em compensação, esbanja categoria nas laterais, têm um paredão à frente dos beques, dois goleadores de primeira categoria - e mais que tudo um sentido de equipe, dentro e fora de campo, como nunca houve. A isso dão depreciativamente o nome de "esquema do Parreira".
Pois sem esquema não se ganha Copa e não conheço tolice maior do que dizer que é mais importante jogar bonito do que ganhar. Me faz lembrar o América de quatro décadas atrás, brilhando em campo mas incapaz de chegar ao título. Ganhou o apelido debochado mas merecido de tico-tico no fubá.
Por essas e outras é que comentários, no momento, só acolho os de Cruyff, aquele que impõe ao time do Barcelona seu esquema graças ao qual Romário é campeão da Espanha. Grande jogador que foi, grande técnico que é, Cruyff vê o grande poder da seleção brasileira com a admiração de quem é neutro e isento. Afinal, holandês, ele não tem medo de perder lugar no Olimpo brasileiro para os novos heróis do futebol".

O artigo de Evandro, publicado naquela manhã, três dias antes do jogo pelas oitavas-de-final contra os Estados Unidos, escrito num jornal das Organizações Globo, foi faísca em barril de pólvora no debate televisivo da noite na Bandeirantes, grupo de mídia concorrente. O programa "Apito Final" era um debate comandado pelo jornalista Luciano do Vale, que contava com os jornalistas Juarez Soares e Sylvio Luiz, e os ex-jogadores Rivellino, Gérson, Tostão e Mário Sérgio, além do jornalista e poeta Armando Nogueira. Mário Sérgio e Gérson apontaram a metralhadora para aquele que, segundo o primeiro, era um "jornalistazinho moleque que estava querendo aparecer". Os ataques e impropérios contra Evandro Carlos de Andrade se seguiram até os comerciais. Na volta destes, silêncio absoluto no estúdio, câmera sobre Armando Nogueira, que ouvira calado todos os ataques do bloco anterior. E Armando fala: "gostaria de deixar claro que o Evandro não é nenhum moleque, não é nenhum garoto inexperiente que começou agora no jornalismo. Evandro é meu amigo desde os tempos em que cobrimos juntos a Copa de 54" ... e Armando narra todos os meios de comunicação em que os dois trabalharam juntos. Terminada a narrativa, sob grande constrangimento, seguiu-se o programa. Evandro Carlos de Andrade, autor do artigo, era, nada mais nada menos, o Diretor Geral de toda a Central da Rede Globo de Jornalismo.

No dia seguinte, a CBF mandou o artigo "Tudo certo" por fax para os EUA e o supervisor Américo Faria reuniu jogadores e comissão técnica antes do treino, na Universidade de Santa Clara, e o leu em voz alta como fator motivador para o grupo. O episódio só aumentou a acidez da relação entre a comissão técnica, especialmente Zagallo, e a imprensa paulista. As críticas não diminuíram, muito pelo contrário, aumentaram. Quando o Brasil quase foi derrubado pela Holanda, a voz dos críticos quase atingiu o Olimpo, mas a vitória brasileira só fez crescer o "risco de título". Quando a Seleção Brasileira avançou à final, o mesmo "Apito Final" teve uma noite de clima quase fúnebre. E o Brasil foi tetra...

Zagallo jogou duas Copas do Mundo como jogador e foi campeão em ambas: 1958 e 1962. Como treinador, foi campeão em 1970. Mantido no cargo, foi semi-finalista em 1974. Como coordenador-técnico voltou a ser campeão na Copa de 94. Jogar cinco Mundiais e ser campeão em quatro, e tendo chegado à semi-final em todos os cinco, era um currículo que ninguém tinha no futebol mundial. Após a Copa de 94, Parreira sai. Zagallo poderia ter saído também, já realizado, já com 63 anos. Mas ele decide aceitar o convite para ser o técnico no lugar de Parreira, para a loucura de seus críticos. E eis que em 1997 ele consegue levar a Seleção Brasileira a ser campeã de uma Copa América jogada fora do Brasil, algo inédito nos 83 anos que a Seleção Brasileira tinha então. Emocionado à beira do campo, Zagallo esbraveja com dedo em riste aos microfones da mídia brasileira: "Vocês vão ter que me engolir!".



E em 1998 ele foi para sua sexta Copa do Mundo, e chegou à sua quinta final, na qual desta vez foi derrotado. Seis Copas, seis vezes semi-finalista, cinco vezes finalista, quatro vezes campeão. Um curriculum diferenciado do Velho Lobo, Zagallo.



Mário Jorge Lobo Zagallo

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