Texto escrito por Murillo Moret e publicado no site Calciopedia (www.calciopedia.com.br) sob o título: "Do Olaria à idolatria no Napoli: Cané foi o primeiro negro a jogar e ser treinador na Itália".
Jaburu, em 15 de outubro, anotou o único gol do Olaria naquela derrota em São Januário para o América, por 4 a 1. Cané fez sua estreia como titular no Campeonato Carioca naquele dia de 1960, em jogo válido pelo segundo turno da competição estadual. Nascido no Rio de Janeiro, Jarbas Faustinho, o Cané, despontou no futebol na seleção de Petrópolis que jogou no campo do Fluminense. Desprezado pelos dirigentes tricolores, Cané começou a treinar no Olaria e por lá ficou. O saldo da primeira temporada como profissional do atacante de 21 anos foi positivo: oito partidas e três gols – contra Bonsucesso, São Cristóvão e o Vasco do artilheiro Pinga, 4º colocado no Carioca anterior.
No novo ano, Cané marcou 5 gols em 19 partidas na campanha mediana de sua equipe no torneio do Rio de Janeiro. O Olaria, no entanto, foi destaque no jornal A Noite após uma vitória sobre o Flamengo, em agosto, por 3 a 2, no Maracanã. Cané fez o segundo gol dos bariris, após vencer na corrida o zagueiro Jadir, e desempatou a partida, decretendo o resultado final, ao receber de Rodarte e encobrir o goleiro Fernando. Em agosto de 1961, o presidente do Olaria, José Albuquerque, estipulou um preço pelo jogador: 10 milhões de cruzeiros. Ele o fez porque o Corinthians tinha se interessado pelo atleta – e pelo meio-campista Haroldo.
No início de 1962, o Olaria precisou se desfazer de alguns jogadores. A chegada do novo técnico (Duque substituíra Jorge Vieira) calhou de vir no exato momento de diminuir a folha salarial da agremiação. Após Vasco e Portuguesa de Desportos manifestarem interesse pelo atacante, Albuquerque abaixou o preço para 8 milhões. Mas uma jogada do outro lado do oceano levou Cané à Itália por 17 milhões de cruzeiros (30 mil dólares, à época, e pouco mais de R$ 6 mil, em valores atualizados). “Não posso negar que estou contente, pois vou receber quase 7 milhões à vista”, disse o atleta, que tinha 22 anos à época.
A contratação, que já havia sido conturbada porque o presidente Achille Lauro fechou com o jogador sem comunicar ao técnico Bruno Pesaola e ao diretor técnico Eraldo Monzeglio, ganhou ainda mais tensão. O jogador já estava em Nápoles quando o ministro do Comércio Italiano quis cancelar a transferência a qualquer custo. O Primeiro-Ministro italiano queria pôr fim às contratações de atletas estrangeiros. Até então, as únicas compras consideradas legais seriam as de oriundi – como a de Jair da Costa, negociado com a Inter.
Num determinado momento, Cané chegou a se filiar ao Milan, porém, finalmente assinou com os partenopei em setembro daquele ano, depois que o Ministério das Relações Exteriores da Itália responsabilizasse o Napoli pelas liras oferecidas ao Olaria. O Primeiro-Ministro dizia que a fuga de dinheiro do país, na década de 1960, poderia afundar a Itália em crise financeira. Porém, tudo deu certo e Cané teria a chance de seguir o caminho que tantos outros jogadores canarinhos fizeram entre os anos 1930 e 1970 para brilhar no Belpaese. Ademais, ao lado de Jair, foi pioneiro: os brasileiros foram os primeiros negros a atuarem no futebol italiano.
As coisas estavam complicadas para Cané, no Napoli de 1962-63. A torcida vaiava o brasileiro em todos os jogos, pois Bruno Pesaola colocava o atacante para defrontar sozinho as defesas robustas e viris do futebol italiano. Quem disse foi Beto, craque do Bonsucesso que fez testes no Milan e reclamou demais dos zagueiros brucutus na Bota. China, artilheiro da Sampdoria em 1962-63, e o próprio Cané reclamavam dos zagueiros brucutus. O atacante do Napoli não gostava do estilo de jogo partenopeo, pois o sistema era, afirmava ele, “todo mundo na defesa e apenas um no ataque”. Cané continuava: “o pior é que eu sou este único atacante e sofro as consequências”. Ao fim da época, o Napoli, por um ponto, foi rebaixado à segunda divisão.
Cané, aos poucos, foi deixando de ser acusado de não ajudar a equipe. Militou na Serie B por duas temporadas com o Napoli e, na segunda, marcou 12 gols na campanha do segundo lugar, um campeonato perdido para o Brescia por um ponto, mas que levou os partenopei à elite. Sempre com humildade, Cané era cada vez mais respeitado no San Paolo.
Tudo melhorou quando, antes do início da época 1965-66, o Napoli contratou o ítalo-brasileiro Altafini e o ítalo-argentino Sivori, de Milan e Juventus, respectivamente. Cané foi o vice-artilheiro do time, com 12 gols, e a equipe napolitana terminou a temporada na 3ª colocação. O único troféu do brasileiro na carreira, inclusive, foi conquistado em 1966. O Napoli foi o campeão da Copa dos Alpes, competição realizada na Suíça entre equipes italianas e suíças.
O Velho, como era chamado desde muito jovem por seus cabelos brancos, ficou na Campânia até 1969. Ele esteve presente nas ótimas campanhas napolitanas na segunda metade da década, ajudando o clube com 49 gols. Recém-promovido da Serie B, o Bari desembolsou uma nota preta por Cané para temporada de 1969-70. Como um todo, os galletti fizeram péssima época, condicionada com apresentações ruins do brasileiro, e foram novamente rebaixados.
Depois de duas temporadas e apenas quatro gols com a equipe baresa na Serie B, o atacante voltou ao Napoli em 1972. Na temporada 1973-74, Cané voltou a mostrar um bom futebol, atuando bem mais recuado que em seu início de carreira, e fez sete gols. Na época seguinte, sob comando do brasileiro Luís Vinício, que fora ídolo com a camisa azzurra, o brasileiro foi pouco utilizado e encerrou a carreira, aos 36 anos.
Ao todo, Cané fez 253 jogos pelo Napoli e marcou 70 gols. Até hoje, o brasileiro está no grupo dos jogadores que mais vestiram a camisa do clube na história (é o 16º da lista) e também é um dos maiores artilheiros – o 8º, empatado com Marek Hamsík. Praticamente desconhecido no Brasil, Cané encerrou a carreira como ídolo do Napoli, fazendo valer a história de brasileiros bem sucedidos em Nápoles, que teve Luís Vinício e Altafini como grandes ícones e viria a ter Careca e Alemão pouco mais de dez anos depois, no melhor Napoli da história.
Após treinar a equipe juvenil do Napoli, Cané peregrinou pelas quarta e quinta divisão do futebol italiano comandando, entre outras, Frattese, Turris, Sorrento e Juve Stabia. Em 1994, chegou a assumir o Napoli (de Fabio Cannavaro e Eugenio Corini), mas como suplente de Vujadin Boskov, uma vez que não tinha licença de treinador. Mesmo assim, acabou sendo também o primeiro negro a treinar um time da Serie A. Até hoje, Cané vive na Itália e, volta e meia, aparece na mídia dando pitacos sobre a equipe napolitana.
Jarbas Faustinho, o Cané
Nascimento: 21 de setembro de 1939, Rio de Janeiro
Posição: atacante
Clubes como jogador: Olaria (1960-62), Napoli (1962-69 e 1972-75) e Bari (1969-72)
Clubes como treinador: Napoli (juvenil) (1976-77), Frattese (1978-79), Turris (1979-81), Afragolese (1981-84 e 1987-88), Sorrento (1984-87), Campania-Puteolana (1988-89), Juve Stabia (1990-91), Ischia Isolaverde (1993-94) e Napoli (1994-95)
Títulos como jogador: Copa dos Alpes (1966)
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